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A Notícia no ponto de vista dos pais

A tua primeira e fatídica ressonância estava marcada para as quinze horas. Esperámos com calma, uma hora de atraso. Tu estavas disfarçadamente ansiosa. Lia-te nos olhos profundos, já mo dizias em silêncio, os teus olhos não se enganavam, eu só estava distraída.




Costumava dizer que se acontecesse outra desgraça na minha vida eu não aguentava. Depois da morte penosa, ao longo de meses do avô, da doença do pai e todas as provações a que a vida já me tinha exposto, não pensei que pudesse haver mais papéis difíceis para mim. Dizia-o a toda a hora. Ouvia estúpida e hipocritamente que não seria nada, que não passaria tudo de susto. 
De algum modo, aquelas palavras tolas que todos diziam sem cautela acalmavam-me por breves minutos, mas eu já sabia. Lá no fundo eu sabia. Mais cedo ou mais era inevitável o confronto com o diagnóstico.

Entraste para a ressonância com a calma assustadora de um adulto que sabe ao que vai. Não foi preciso sequer anestesia, aguentaste de forma hércules, com a pétrea imobilidade necessária, ouvindo cada barulho ensurdecedor daquela bola de cristal gigante que nos lê as entranhas e acaba com vidas de famílias inteiras sem qualquer dó.
Pouco tempo passara e eu já me sentia a sangrar, como quem se esvai em poucos segundos e jaz para sempre. 
O olhar preocupado e atento às imagens que se criavam a cada segundo e a ausência de um aceno tranquilizador aos meus sinais de angústia, através do vidro que me separava da equipa médica que fazia o exame davam-me a perceção de um diagnóstico tremendo. 

Tornara-se óbvio ao meu coração, que era grave. Grave e irremediável. A minha formação em medicina de nada serviu naquele instante, senão para abrir o fosso até ao inferno e despenhar o meu corpo em queda livre.

Morri no instante em que ouvi proferir as palavras tronco cerebral. Como médica, sei bem o que me diziam aqueles olhares e aquela localização, sabia bem que o que me estavam a dizer era que irias
morrer, era uma questão de tempo. Mas afinal não é tudo uma questão de tempo? A perspetiva de que acabavam de encurtar a tua linha do tempo é que era aterradora.

O mundo parou. Durante horas e horas não consegui ouvir mais nada do que diziam, o barulho dentro da minha cabeça era ensurdecedor. Um eco repetitivo a dizer-me que te ia perder esgotava qualquer força em mim, as pernas paralisaram, o coração parou, ouviam-se pequenos gemidos agónicos em surdina, enquanto cambaleava, embatendo em tudo o que existia pela sala onde me colocaram, para me conter.

Enquanto o pai te mimava filha, ainda sem conhecimento da tragédia que se abatera sobre nós, eu questionava-me se estaria a sentir o que Maria sentia enquanto o seu Filho morria crucificado. Questionava-me o porquê disto? Mereceria eu tal atrocidade? Ver morrer um filho com seis anos de idade? Perder o meu primogénito? O meu maior feito enquanto mulher e mãe? O maior produto do nosso amor? Teria sido um debacle? As perguntas sucediam-se umas às outras ininterruptamente, a cada fração de segundo em mim. Tinha de ser um glioma no tronco? Tinha ser o pior tumor, para o qual se investiga há décadas e décadas e ainda não se descobriu nada eficaz? E no pior local anatómico, onde fazer uma cirurgia é incompatível com a vida? 
O que seria de ti? De nós? Do mano, que tanto desejámos e agora já não era assim tão certo, porque acabava de perder os pais também. Seria justo escolher um filho em vez de outro? Seria justo desistir de tudo e partir contigo? Será que era isso que irias querer para nós, para o mano? E como te iríamos dizer que a tua vida estava em contagem decrescente, que haviam invertido a direção dos ponteiros do teu relógio? 
Agarrei-me ao que pude para não me atirar para o chão, a quem pude. Tinham-me colocado numa viagem de comboio sem bilhete de volta e eu não queria estar ali! Seriam estes os desígnios que Deus havia escolhido para mim? Achava ele que podia terminar assim com a minha vida? E roubar-ma assim de forma tão abrupta? Como ia dizer ao meu marido que esperava cá fora que a nossa Bijou estava a morrer? Como se diz a um pai que vai perder a sua melhor forma de vida? A sua essência?
Pedi que me arrastassem até ti. Precisava da tua fortaleza para me abrigar. Mas como te diria? Estavas algo inquieto por não me veres sair do exame. Como sempre, esperavas que partilhasse o mundo contigo, como sempre o fizemos, mas desta vez, não aconteceu e logo percebeste que era grave. Fixaste os meus olhos rasos de lágrimas. Abraçamo-nos. Paralisei-te com as minhas palavras. Sussurrei-te ao ouvido o diagnóstico e tu, sem saberes nada de medicina, sentiste o pesar das minhas palavras. Chorámos os dois, abraçados na dor imensa de quem acabava de perder um filho, ainda que que ele ainda estivesse ali, ainda que respirasse e precisasse tanto do nosso colo.

Em pouco tempo, o nosso instinto paternal ou a antecipação da falta dela emergiu em nós e voltámos a ti, filha. Olhaste para nós e não disseste uma palavra, não fizeste uma única pergunta. Leste-me nos olhos de mãe a tua resposta. Sábia como foste sempre. Abracei-te e disse-te que estava lá para te proteger, sempre, para sempre.

Em menos de nada, a notícia espalhou-se e a família acorreu ao nosso encontro. Pelos corredores do hospital ouviam-se ecos de dor e gemidos contidos. Mesmo quase em silêncio, o quadro era dantesco. Estávamos todos juntos, como aquando do teu nascimento, só que desta vez para chorar a tua morte. Diziam-me com a assertividade de quem quer levantar um soldado para combater que ela ainda não tinha morrido, que eu tinha de ser forte. Mas eu já me sentia vencida. A morte já era vitoriosa em mim.
Durante oito dias, fiquei na escuridão do meu leito, à espera de que ela também se lembrasse de mim. Não comi, nem bebi, não tomei banho. Entravam e saíam da minha casa pessoas, muitas pessoas, todas as pessoas boas da nossa vida que vinham abraçar-nos e cuidar dos meus filhos, de nós.


Tudo o que decidimos foi sempre a pensar no teu bem-estar, na tua alegria.
Nunca te vi chorar, nunca te vi em baixo. 
Protegeste-me tão bem nas fases menos boas, sim, eu sei que as tiveste e que sabias perfeitamente que a mãe seria o teu porto seguro, a tua confidente.
Só soube das vossas conversas depois de partires, confesso que por vezes fiquei triste, mas olhando para trás... Tu protegeste-me.

Não consigo deixar de sentir uma mágoa por não ter estado a 100% quando vocês mais precisavam.
Quero acreditar que fiz tudo o que me era humanamente possível na altura.
Que consegui estar presente para ti, para tudo o que necessitaste e para te mimar o mais possível.
Numa altura em que sair da cama e viver era impossível, tu foste quem me indicou a direção da luz e a mãe a corda que me puxou para cima. 
Deram-me as ferramentas para erger-me de novo.

No último dia e após toda a gente se despedir de ti, ficámos só nós os três.
Estivemos deitados ao teu lado, em silêncio atentos, à espera!
Quando chegou a hora e com a nossa música a tocar, despedimo-nos de ti.
Dissemos-te para ires em paz, que tudo ficaria bem e o quanto te amávamos.
Partiste como sempre desejei, sem sofrimento e em paz! 
Serenamente... 

Hoje vejo nas tuas fotos que em todos os momentos tinhas uma palermice na manga e isso deixa-me contente.
Quer dizer que no meio da monstruosidade eras feliz!

Obrigado por tudo o que me ensinaste.

Amamos-te daqui até à LUA!